segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

De onde estou posso avistar o mar.

De onde estou posso avistar o mar. E consigo perceber a sua solidão, a sua exagerada inquietação, a sua relutância em fazer as pazes com o ar. No seu reino molhado é-me permitido ver o invisível, a memória dos dias que gastamos, o tempo que nos falta, como um tesouro que a eternidade nos permite utilizar.
Para lá da penumbra que não nos deixa alcançar a linha do horizonte, o inverno espreita já. Há de chegar violento, aniquilante, gritando a sua raiva opaca, que faz questão de atirar contra as janelas fechadas, contra as feridas de cada tarde, contra os que escrevem versos nas madrugadas carregadas de amor, sem sentir o pavor da solidão.
Mas ela voltará, a primavera. Incendiará desejos em cada casa e em cada uma das grutas onde hiberna o fulgor. Será a memória de todas as memórias que vem falar-nos de futuro. As folhas regressarão às árvores, aos ramos, aos raios, aos rios.
Carregadas de nós, de chão e de vento, como abelhas e pólen.
Serão os nossos dedos no alto de uma árvore. Para proteger as flores. Para louvar os frutos e os pássaros. Para cantar a inocência do sol e para tornar a sombra inesgotável.

Joaquim Pessoa, em “Ano Comum”. 

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